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Curvar-se, ou ajoelhar-se?

O termo traduzido aqui por "curvar-se" é "keri'á", e significa literalmente ajoelhamento. Muitos nos útimos anos em busca de retornar ao cumprimento da Torá conforme é ela em suas fontes, após descobrirem o ínvio que é o judaísmo na atualidade em suas divisões grupais e sub-grupais, cada um distanciado mais que o outro do que é realmente o judaísmo em sua essência no Talmud (e, não refiro-me aos que se intitulam reformistas ou liberais, senão aos judeus que vivem como judeus, os ortodoxos), empeçaram a curvar-se alguns à moda cristã, outros, à muçulmana nos cinco lugares da oração onde devemos curvar-nos.

Contudo, devemos lembrar o fato de que muitas palavras (e em qualquer idioma) possuem sentido diversificado, ou modificado pelo uso, como é o caso da palavra "coração" em português, cuja conotação é sensivelmente variada, e o uso dessa palavra é similar em vários idiomas no que concerne é variedade de seu sentido.

O mesmo ocorre com verbos, e em todos os idiomas, como por exemplo o verbo "ver", que por vezes significa além de visão física, senão a faculdade mental e intelectual. O termo "kar'á" - ajoelhar-se - é usado também para o agachar do camelo e para o acostar-se do leão, e é claro que este último não se "ajoelha".

Após haver declarado que as explanações dos geonim da Babilônia nos obrigam, por que as explicações deles recebidas provêm diretamente dos últimos sábios do período talmúdico, os amoraím, seria aconselhável, a meu ver ,trazer aqui a responsa gaônica sobre o caso. Antes, porém, vemos necessário lembrar as palavras do próprio Maimônides em seu livro Morê ha-Nevokhim (O guia dos perplexos) na primeira abertura anterior ao prefácio à prima parte do livro e concernente aos primeiros capítulos:

"A primeira meta deste ensaio, é o esclarecimento da nomenclatura que fora trazida nos livros proféticos, dentre os quais há nomes que são associados ("mechutafim"), os quais foram entendidos pelos estultos conforme [apenas] uma de suas conferências sobre as quais pode ser dito tal nome.

Outros são emprestados ("muchalim"), e também a estes entenderam conforme a primeira significação, da qual os demais sentidos foram emprestados [os demais].

Outros dentre eles são dúbios, que às vezes podem ser tidos como se houvessem sido ditos por falta de meticulosidade, e às vezes pode-se pensar que são [também] nomes associados".
Ou seja, o fato existe e é comum em hebraico, e não somente em nomenclatura bíblica. traremos, agora, o dito pelos geonim, conforme o tratado Berakhot (12:b):

"...Rav chechat, quando se curvava (kar'á) [na oração], curvava-se como uma
ĥizerá, e ao reerguer-se [de seu curvar-se], erguia-se como uma serpente (ĥiwiá) [ao erguer seu pescoço para o ataque]. ..."

"ĥizerá é uma das espécies de [arbustos] espinhosos comuns na Babilônia, e chamam-no [ao arbusto nos dias dos geonim em árabe] al-hizer, pois por ser a Babilônia desde a antiguidade local de linguajar aramaico e caldaico, e até hoje em todas as cidades falam tanto os judeus como os gentios, mesmo nas cidades fundadas pelos ismaelitas, sendo a maioria dos nomes pronunciados mais lenemente..." - Otzar ha-Geonim, tr. Berakhot, pg 34, sobre a página do Talmud citada, por Rav Haiê Gaon.

Al-hizer é uma espécie de bambu comum na Mesopotâmia e na índia (Bambusa arundinacea, ou Bambusa spinosa), e quando é jovem, seu topo é dotado de elasticidade, dobrando-se para um dos lados sempre. Seus espinhos saem dentre os nós do tronco, entre as folhagens e o caule.

Na resposta gaônica citada, duas gravuras foram enviadas por rav Haiê Gaon, sendo uma a forma errônea, e a outra a correta. trazemos abaixo a ambas, para que o leitor entenda de que se trata o curvar-se na oração. O modo mais assemelhado ao formato do número um (1) é o errôneo segundo o trazido pelo gaon, e não há alusão à possibilidade que tal seja efetuada de outro modo (semelhante ao islâmico ou ao cristão), nem o escrito no Talmud deixa margem para que se possa pensar que tal é a forma correta nesta página, e muitos se confundiram por que se diz que "keriá" em todo lugar é sobre os joelhos (veja-se páginas 34 e 35 no Talmud Berakhot).

A razão do mal-entendido:

De um lado, as muitas inovações e costumes, que são sempre prejudiciais; de outro - a exegese minuciosa, meticulosa, mas nem sempre fiel ao sentido literal - às vezes tem seu lado bom, às vezes é perniciosa, e leva o povo a afastar-se do que é o caminho reto. "Pergunte a teu pai, e ele te dirá, e a teus anciãos..." - Dt 32:7

Havendo chegado o povo de Israel ao ponto de haver abandonado muitas formas de agir que são nada mais, nada menos que lei, ás vezes simplesmente para não sentirem-se semelhantes a determinados grupos étnicos por puro preconceito, ou para não serem demasiadamente diferentes do povo circundante, levou-nos o fato a praticar uma religião distinta daquela que praticaram nossos pais no período talmúdico, tomando cada grupo judaico certas formas de agir peculiares. Por que não cuidar de manter aquilo que foi transmitido pelos receptores diretos da forma correta de cumprir os preceitos?

No chulĥan 'Arukh é trazida uma forma complicada de como deve-se curvar nas quatro bênçãos nas quais se faz necessário. Porém, pelo que a palavra hebraica é ajoelhar, ao que tudo indica, exige-se ali com base em vários escritos dos "richonim" que primeiro dobrem-se os joelhos ao dizer "Barukh" (sem chegar ao chão), em seguida a cabeça pende-se sobre o corpo ao proferir "atá", após o que levanta-se a cabeça ao proferir o Nome Sagrado de Deus, e depois os joelhos voltam à posição normal, ao término da bênção.

O anelo dos adeptos do Rambam é praticar um judaísmo puro, distanciado dos matizes do exílio e em fidelidade extrema ao texto talmúdico. Exatamente por motivo de tantos preceitos postos de lado, como o cobrir da cabeça entre as moças jovens ainda não casadas, ou o abandono do preceito de manterem sobre si os homens os filactérios desde o amanhecer até o fim do dia, ou o desuso do "radid" entre as mulheres casadas, sendo-lhes suficiente o lenço ou a peruca, ou até mesmo um chapéuzinho à moda francesa com "selo rabínico" de aprovação, leva muitos a errar na compreensão do texto do Michnê Torá, quando pensam que deste ajoelhar aprenderam os muçulmanos na antiguidade a efetuar suas orações, visto que nos países islâmicos fundamentalistas ainda se cobrem as mulheres com o "radid" por sobre o lenço que lhes cobre a cabeça, e assim muitos outros pormenores da lei judaica como era praticada por nossos antepassados.

Todavia, não é deles que devemos aprender nossa Torá, senão verificando nos escritos dos anteriores ao Rambam, que nos transmitiram a forma exata de como cumprir tais pormenores, segundo receberam eles mesmos de seus antecessores, os amoraím. O curvar-se na oração segundo o transmitido é simplesmente o curvar da coluna vertebral toda, sem movimento qualquer dos joelhos, com a cabeça sobre o peito, como se buscasse ver um pingente ali pendurado. Para ajudar na compreensão disto cuidou rav Haiê Gaon em sua carta de trazer os desenhos acima - um indicando o que é errado, outro o que é o certo.
o tradutor

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